segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Vocação - Padre Carlo Batistoni

Como por um grito de libertação o movimento cultural que veio afirmando-se com toda a sua força no meado do século XX reivindicava a absoluta independência do indivíduo do sistema. Tinha sido demasiadamente decepcionante descobrir o que o homem é capaz de fazer: campos de extermínio russos, nazistas, chineses… ogivas nucleares que em poucos minutos provocaram milhares e milhares de vitimas… armas usadas no Vietnã, capazes de queimar um homem sem que ele morresse…
O mito do homem que é capaz de construir o seu planeta desabava progressivamente desde então até os nossos dias junto com cada árvore que cai. O futuro prognosticado nos anos 60 como um futuro mais humano resultante do progresso econômico global mostrou bem cedo os seus pontos falhos e, desmentindo toda ilusão, expôs o outro lado da moeda: divisão de classes, pobreza e fome, intolerância das minorias étnicas, religiosas, imposição de sistemas que não reconhecem ao homem a sua dignidade. E, como salário, restaram a solidão e o individualismo dominante, a incapacidade ou a grande dificuldade em construir relações estáveis. E, bem no fundo, em grande parte das pessoas ecoa escondida a convicção de Freud e Schopenhauer: “o homem é destinado a ser infeliz”.
Teremos que nos resignar a esta deprimente afirmação como se fosse verdadeira?
Alguns disseram “não”. Disseram que a felicidade “é um direito”, e disto decorreu o lema que aparece em todo canto: “é preciso ser feliz”. Uma frase que é apontada como uma verdade fundamental, um axioma, base e finalidade de existência. Com certeza nisto existe parte de verdade. No entanto tal convicção está nos impondo a “ditadura da felicidade”: tenho que buscar a felicidade a todo custo e, para tanto, posso recorrer a tudo quanto satisfaça minhas exigências econômicas, afetivas, relacionais… até religiosas. O parâmetro fundamental se torna assim a minha insaciável sede de felicidade a todo custo. Não é isto que encontramos muitas vezes escondido no mais íntimo das nossas decisões? Será possível que, bem lá no fundo, esta busca desesperada da “minha felicidade” não é o principio da própria insatisfação? Será que este perigoso inimigo não atente também à opção para a vida consagrada?
Um dramaturgo armeno (W.Saroyan) chegou a uma brilhante conclusão: «A felicidade é saber que não precisamos ser felizes a todo custo». Esta visão nos dá uma autêntica base de liberdade para escolher e, principalmente para acolher. Sim, acolher. Pois a vocação não é escolha para uma possível felicidade construída com as próprias mãos, mas é felicidade recebida como dom.
A ditadura da felicidade nos impõe a frustrante procura de algo que desconhecemos, afinal o que é “felicidade”? Se nós, nós não sabemos “quem” somos, como poderíamos saber o que nos faz felizes? Eis, então uma avalanche de propostas, um verdadeiro mercado de receitas que nos são oferecidas para encontrarmos a felicidade.
Quantas vezes vi pessoas amarguradas, sentindo-se frustradas, não realizadas porque não encontraram a própria felicidade! Mas é obvio, enquanto estivermos procurando uma felicidade abstrata nunca a encontraremos a não ser na fantasia da nossa mente. E já que o mundo não é a nossa mente, as conseqüências são bem claras.
Creio que, bem aqui, a vocação religiosa tenha algo importante a propor, hoje como sempre. Em primeiro lugar é preciso recordar que vocação é vocação, isto é, é uma proposta que vem de fora do meu “eu”. É preciso distinguir claramente “vocação” de “aptidão”; uma não é outra. Procurar a própria “aptidão” é justo, necessário; é o que se faz com as técnicas psicológicas e os impropriamente chamados “testes vocacionais”. Ao contrário, a vocação não é sujeita a medição de nenhum tipo. Não se encontra no homem, mas fora do homem. Enquanto estivermos ainda considerando a vocação como uma “aptidão” sempre teremos a frustração sentada ao nosso lado, pois sempre nos perguntaremos: “será que é isto ou aquilo?”, numa eterna dúvida alimentada pela insegurança que respiramos a todo momento. Mas “vocação”, graças a Deus, não é “aptidão”.
Evidentemente existe um profundo laço entre a vocação e a felicidade. Todos lembramos o episódio de Jesus com o jovem “chamado”, “convidado”; o Evangelista diz dele que «foi embora triste» (Lc. 18,22). Na visão de Lucas quando Jesus convida alguém, pousa um olhar definitivo sobre ele e, oferecendo um caminho de seqüela, oferece a possibilidade de ser feliz. Eis que aqui não temos a busca de uma felicidade teórica, imaginária; temos, antes, a possibilidade que um homem seja feliz. Jesus não diz nem como nem quando a fim de que não haja confusão e se imagine novamente a felicidade como um objetivo a ser conquistado o qual, como vimos, trará sempre frustração. É fato de caminhar com Jesus que faz feliz uma pessoa. O próprio ato de caminhar, não a meta cobiçada. É licito perguntarmo-nos o porquê.
Em primeiro lugar porque, não sendo confundida a vocação com a aptidão, aquele que percebe o seu espírito ser incline para uma vida consagrada a Deus percebe também que está sendo objeto privilegiado do amor de Deus. E disto não precisa ter vergonha ou sentir um certo embaraçoso pudor. Certamente, é evidente e continua na Escritura esta atitude própria de Deus que “pousa o olhar sobre a pessoa amada” –assim canta Maria-. Sentir-se objeto do amor privilegiado já nos coloca num modo especial diante do mundo, diante das pessoas, de nós mesmos e, por último, do próprio Deus. Quem se sente amado de modo não indefinido experimenta o sabor da felicidade.
Em segundo lugar, já que não nos conhecemos, Aquele que nos toma pela mão, faz-nos conhecer “quem” realmente somos e com isto nos oferece o primeiro profundo encontro com a liberdade. Todos sabemos que o primeiro ato para amar e amar-se é se conhecer por aquilo que somos sem julgamentos, e esta experiência se faz somente na comunhão profunda com Jesus e com uma comunidade autêntica de fé.
Caminhar com Jesus significa deixar-se conduzir (não tomar as rédeas). Jesus repreendeu Pedro que instintivamente agiu como nós somos tentados a fazer: antecipar os passos de Jesus, pretender dizer a Ele o que fazer e para onde ir. As últimas palavras de Jesus ao Apóstolo soavam novamente assim: «quando eras mais moço, tu te cingias a ti mesmo e andavas por onde querias; quando, porém, fores velho, estenderás as mãos, e outro te cingirá e te levará para onde não queres » (é preciso ler: “moço” e “velho” não somente como adjetivos cronológicos mas existenciais). Eis então o terceiro momento da beleza da vocação: sentir-se conduzido amorosamente, firmemente rumo àquilo que desconhecemos. É um renovar a cada passo a capacidade última e definitiva do homem que o distingue de todo ser e o manifesta como imagem de Deus: ouvir infinitamente.
Assim, deste modo, não precisaremos oferecer ao mundo uma das tantas receitas na busca angustiosa de felicidade; será suficiente dizer sem palavras: “aqui está uma pessoa feliz”!
Permito-me oferecer parte de uma linda oração do XII século que há tempo saboreio: “...mas, Senhor. Se tu és a Paz, Se tu és a Sabedoria, Se tu és a Beleza, Se tu és o Amor, Porque deveria buscar a felicidade fora de ti? E se tu estás em mim, porque deveria busca-la longe de mim?”
(texto escrito pelo Padre Carlos Batistoni, do Instituto Bíblico Regnun Dei e professor de Teologia Sistemática)

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